Profa. Dra. Silmar Leila dos Santos
Desde que passei a exercer a profissão de docente em escolas públicas, há 19 anos, sempre presenciei durante o mês de novembro, o processo que de decoração destes espaços públicos com árvores enfeitadas com bolas coloridas, botas de neve vermelhas, festões dourados e prateados, bonecos de neve, guirlandas e outros tantos apetrechos que, como você leitor/leitora já deve ter imaginado, representa a comemoração do natal. Confesso que, por vezes, pouco me importei com tal decoração, afinal de contas, essa decoração representava que o ano letivo estava chegando ao fim e com ele as férias escolares, ou seja: tudo de bom!
No entanto, nos últimos anos, tenho prestado mais atenção neste processo de “embelezamento” das escolas, no que se refere à chegada do natal e hoje resolvi compartilhar, neste artigo, seguinte questão: CABE ÀS ESCOLAS ACEITAR OS ENFEITES DE NATAL, SEM BUSCAR UMA PROBLEMATIZAÇÃO? AFINAL DE CONTAS, QUEM COMEMORA O NATAL?
Saibam que eu ainda não tenho uma resposta para estas perguntas, mas gostaria aqui de fazer algumas ponderações ao respeito do que tenho observado e tentando analisar sobre o assunto, tendo como referência a Educação em Direitos Humanos.
Segundo dados do último censo oficial do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano de 2010, registrou-se que:
– 64,6% da população brasileira, se declararam católica;
– 22,2% declarou seguir pertencer às religiões evangélicas;
– 2% eram espíritas;
– 0,3% seguiam as religiões de matriz africana: candomblé ou umbanda;
– 8% da população se declarava não seguir religião nenhuma;
Além disso, registrou-se 107 mil seguidores do judaísmo; 65 mil seguiam as tradições indígenas; 35 mil eram islâmicos e 5 mil eram hinduístas.
Observados estes dados, o próprio IBGE nos chama atenção quanto à queda de seguidores do catolicismo, entre os anos 2000 e 2010, que passou de 73,6 para 64,6% e, automaticamente o crescimento do número de evangélicos, neste mesmo período (de 15,4 para 22,2%) e também o aumento dos sem religião, que eram 7,3% em 2000, passando para 8% no ano de 2010.
Independente do aumento ou da diminuição do número de seguidores, de qualquer religião, o que fica explícito é que somos um país com diversidade religiosa e, diante desta constatação, remeto-me ao artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que descreve:
Todo ser humano tem direito à liberdade de
pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião
ou crença e a liberdade de manifestar essa
religião ou crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, em público ou
em particular.
Sendo tal diversidade também garantida pela Constituição Federal brasileira vigente, no inciso VI, do artigo 5º, onde se lê:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Tais garantias nos chamam atenção quanto à liberdade do culto religioso e também a liberdade em não haver obrigação em se seguir religião alguma e, eis o ponto que lhe chamo atenção, caro leitor/leitora deste artigo, propondo-lhe mais uma questão: será que quando naturalizamos o processo e a existência dos enfeites natalinos nas escolas públicas brasileiras, não estamos deixando de considerar a diversidade religiosa existente em nossa sociedade?
No intuito de tentar propor uma reflexão sobre tais questionamentos, passo a apresentar, de maneira sucinta, a resposta para outra pergunta a qual considero também pertinente: como cada uma das religiões apontadas pelo IBGE, comemoram o Natal?
O NATAL ANTES DO CATOLICISMO
Todos nós já ouvimos dizer que os católicos são os que mais comemoram o natal, no entanto, a busca histórica quanto à origem desta festividade, nos leva a informação de que a ideia de renovação, por meio do nascimento, tem suas origens ainda no período da antiguidade humana. O que as pesquisas históricas nos revelam é que no hemisfério norte, entre os dias 21 e 22 de dezembro, ocorre o solstício de inverno que se caracteriza como sendo a noite mais longa do ano e, após esse fenômeno, os dias voltam a crescer. Tal fato astronômico passou a ser considerado, simbolicamente, como a derrota da luz (Sol) sob a escuridão da noite e, com o passar dos séculos, os romanos que festejavam a Saturnália, um festival que homenageava o deus Saturno e que se caracterizava pela troca de presentes no mês de dezembro, também aderiu à ideia de comemoração de nascimento, para o mês de dezembro. Assim, tempos depois, com a oficialização do catolicismo como sendo a religião representativa do Império Romano ─ decretada por Constantino ─, a data do natal foi fixada em 25 de dezembro, passando a ser comemorada a festa solar de Roma. Daí para frente não é difícil compreender a fusão existente entre os ritos pagãos e católicos.
No que se refere ao nascimento de Jesus, não há indícios históricos que comprovem as informações descritas pelo livro sagrado dos cristãos (Bílbia), acrescentando-se ainda as diferenças ocorridas nos calendários juliano e gregoriano, circunstâncias que nos impede de se precisar acontecimentos e datas tão remotos. Assim, o que de fato, há registrado é que a festa de natal não é de criação exclusiva dos católicos e sim, trata-se de uma adequação entre símbolos e crenças, representativas de diferentes tempos, espaços e povos.
POR QUE ÁRVORES FORAM ENFEITADAS E PRESENTES PASSARAM A SER DISTRIBUÍDOS?
Segundo o professor de Antropologia Rogério Cappelli, a ideia de ter um pinheiro como referência de nascimento, vem de tradições pagãs muito antes da existência de Jesus. Seus registros estão relacionados às regiões que possuem invernos rigorosos, porém, como a árvore do pinheiro é a mais resistente ao frio, se mantendo verde mesmo diante de frio intenso, as pessoas passaram a ter uma árvore enfeitada em casa, como forma de demonstrar a esperança de que, sempre se deve buscar pela sobrevivência, mesmo diante de grandes dificuldades.
No que se refere à figura do Papai Noel, sua origem seria na figura do santo católico que, em vida, teria sido o Bispo Nicolau. Ao que foi registrado, este bispo católico tinha o hábito de sempre presentear os seguidores católicos que visitava e, com o passar dos anos, tal iniciativa teria sido atrelada ao período de comemoração do natal católico. Enfim, muitas são as simbologias existentes em torno do natal, porém, diferentemente do que muitos pensam, não se trata de exclusividade, mas sim de adaptação simbólica à ritos e celebrações religiosas que foram se consolidando com o passar dos tempos.
E OS PROTESTANTES, COMEMORAM O NATAL?
É importante lembrar que os protestantes são oriundos daqueles fiéis que romperam com a Igreja Católica, a partir de 1517, sendo o marco desta ruptura a publicação dos protestos de Martinho Lutero contra a Igreja Católica, sendo fundadas a partir daí, uma série de igrejas protestantes pelo mundo.
No Brasil, é comum a denominação de evangélicos aos diferentes grupos que deixaram de seguir o papa católico e que se embasam nas “boas-novas” do evangelho, parte do livro sagrado dos cristãos (Bíblia) e que destaca os ensinamentos de Jesus.
No que se refere à comemoração do natal propriamente dita, não há uma única regra para todos os evangélicos sendo registrado, no entanto, que os Testemunhos de Jeová não manifestam nenhuma afinidade com tal festividade.
Importante ressaltar ainda que, entre os evangélicos há uma rejeição quanto aos simbolismos católicos, o que os caracteriza como totalmente avessos às representações de seres superiores, como é o caso dos santos católicos e os demais símbolos como escapulários, imagens, crucifixos, cruzes e demais adornos. Fato que nos faz entender que as comemorações natalinas, mesmo que ocorram entre os grupos evangélicos, tendem a serem menos explícitas, no que se refere a enfeites e demais rituais cultuados pelos católicos.
O NATAL PARA OS ESPÍRITAS
Os espíritas não seguem o calendário litúrgico da igreja católica, ou seja, eles não se atrelam aos ritos e cerimoniais ao que as festividades natalinas se dedicam. Contudo, não há uma rejeição explícita no sentido de não comemoração, sendo difundido, no entanto, que possíveis comemorações, em 25 dezembro, venham a ser realizadas de maneira mais reservada e que preze sempre pela caridade ao próximo.
RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Para o Candomblé e a Umbanda a representação natalina não está diretamente ligada à simbologia católica (árvores, enfeites, ceias, etc). No caso do Candomblé, não há um ritual de celebração, propriamente dito, porém a confraternização tende a acontecer, dando ênfase ao início à vida. O mesmo ocorrendo com os umbandistas que reverenciam seus orixás e que denominam um deste de Oxalá, que se enquadra na representação de Jesus e é bastante homenageado com oferendas entre os dias 25 de dezembro e 01 de janeiro.
JUDEUS E A FESTA DAS LUZES
Para os judeus, Jesus não possui a característica de divindade, portanto, eles não comemoram o natal como os católicos. Contudo, a noite do dia 25 de dezembro também se caracteriza como uma data festiva, uma vez que os judeus comemoram a festa de Hanukah (festa das luzes), se remetendo a vitória que tiveram contra os gregos, há dois mil anos, conseguindo manter viva sua religião e suas tradições. A ceia dos judeus, no entanto, dispensa o peru e o bacalhau e é regada por panquecas de batata e bolinhos fritos em azeite. E em vez de desembrulharem presentes à meia-noite, as crianças recebem habitualmente dinheiro.
OS NATIVOS BRASILEIROS
No que se refere aos povos nativos do Brasil, também denominados de indígenas, não é possível fazer referência a uma tradição de festa natalina, pois esta não é definitivamente, a questão. Porém, o processo de aculturação e os resultados de séculos de formações missionárias e catequéticas, fazem com que os povos indígenas remanescentes, tenham certa proximidade com a festa natalina, principalmente para o imaginário das crianças que, em regiões mais remotas, costumam receber algum tipo de assistência por parte de instituições religiosas e/ou organizações sociais, no que se referem a roupas, calçados, alimentos e alguns brinquedos. E, com certeza, as etnias que já vivem em centros urbanos e possuem inserção social em grandes centros urbanos tendem a participar, de algum ritual ou festividade natalina com as características ligadas à religião católica.
JESUS É PROFETA PARA O ISLAMISMO
No islamismo Jesus é considerado como um profeta e não tem uma representação divina, por este motivo, os islâmicos ou muçulmanos não celebram o natal e nem possuem nenhuma representação simbólica neste período.
OS HINDUÍSTAS E O NATAL
O hinduísmo é a principal religião da Índia, tendo como principais características: o respeito pela antiguidade e tradição; a confiança nos livros sagrados; a crença em deus sob alguma forma e a sua adoração em algum aspeto; a persistência do sistema de castas, além da crença nas encarnações anteriores e futuras reencarnações. Não comemoram exatamente o natal com as características cristãs, mas entre os meses de outubro e novembro realizam a Festa das Luzes (Diwali) que transmite também os votos de que, juntos, vão conseguir concretizar conscientemente “o cuidado com a natureza, a defesa dos pobres, a construção de uma rede de respeito e de fraternidade, pregando ainda a seguinte mensagem: “nós hindus e cristãos, juntos às pessoas de todas as outras tradições religiosas e pessoas de boa vontade, podemos nutrir uma cultura que promova a ecologia humana”.
Consideradas todas estas descrições, voltemos agora a questão inicial deste artigo:
CABE ÀS ESCOLAS ACEITAR OS ENFEITES DE NATAL, SEM BUSCAR UMA PROBLEMATIZAÇÃO? AFINAL DE CONTAS, QUEM COMEMORA O NATAL?
Minha resposta para esta pergunta, antes de se tornar definitiva, tende a ser provocativa e a agregar mais um questionamento: como simplesmente impor a um espaço público, legalmente determinado como laico a decoração da representatividade de uma única vertente religiosa, sem que ao menos sejam apresentadas suas origens e as caraterísticas desta festividade nas demais religiões? Ou seja, meu posicionamento aqui não é o defender ou condenar a prática da instalação de enfeites de natal nas escolas públicas brasileiras, mas sim, o de propor a todos os agentes da comunidade escolar (docentes, gestores, funcionários, estudantes e seus familiares) uma ampla troca de informações, pesquisa e conhecimento sobre as representações simbólicas de diferentes povos, culturas e crenças. Dando a elas a mesma visibilidade que, até então, dedicamos à tradição católica. Seria possível talvez criar os cantinhos para cada expressão religiosa, buscando valorizar a diversidade? Resgatar tradições históricas dos povos nativos (nossos indígenas); saber um pouco mais sobre os orixás?; conhecer os alimentos da ceia judaica; buscar informações sobre a relação dos islâmicos com a figura humana de Jesus? Enfim, minha defesa aqui é de que devemos promover a Educação em Direitos Humanos em todas as situações cotidianas, alinhando-se a prática pedagógica aos objetivos de respeitar ao próximo por meio da troca e do conhecimento. Divulgando e respeitando a diversidade!
REFERÊNCIAS
EL PAÍS. A origem do Natal: uma luta entre elementos religiosos e pagãos (2017). Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/08/cultura/1512736033_713696.html. Acesso em 09/11/2019.
Diwali, a grande festa das luzes (2015). Disponível em:
https://www.focolare.org/pt/news/2015/11/19/diwali-la-grande-festa-delle-luci/ Acesso em 09/11/2019.
Resumo dados IBGE (2010): Disponível em http://legado.brasil.gov.br/noticias/cidadania-e-inclusao/2018/01/diversidade-religiosa-e-marca-da-populacao-brasileira. Acesso em 09/11/2019
Adorei seu site e seus post.
Olá Suley!
Nossa equipe ficou muito contente com seu comentário!
Abraço,
Silmar Leila
Organizadora da coluna
Grupo de Pesquisa EDH
UFABC