Conforme apontado pela ONU, mais da metade da população mundial usa internet. o número de pessoas com acesso à rede, no Brasil, de acordo com dados do IBGE, chegou, no período de um ano, a 126,4 milhões. Os usuários, acompanhando uma tendência global, utilizam, conforme uma pesquisa divulgada em julho de 2018 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, os smartphones, predominantemente, para navegar, dependendo, cada vez menos, dos computadores. Um levantamento realizado pela Hootsuite e pela We Are Social aponta que os internautas brasileiros ficam, em média, nove horas e quatorze minutos por dia conectados, “perdendo” apenas para a Tailândia e as Filipinas.
As pessoas nunca estiveram tão “acessíveis”, nunca viveram, como agora, de forma tão “interligada”, a distância, entre elas, jamais foi tão pequena – estamos a um clique ou a um toque do familiar ou do amigo mais distante. Pelo menos, essa é a impressão.
Não se trata de ser “passadista”, retrógrado ou reacionário, não é uma questão de defender um dos lados, sendo a favor ou contra a internet. De fato, a rede mundial de computadores, a World Wide (or Wild) Web, possibilitou e possibilita, dentre muitas outras coisas, o encontro e o reencontro de familiares, a criação de novas amizades, um amplo e melhorado acesso não apenas à informação, mas também à formação, a praticidade nos processos de compra e venda, o barateamento de certos procedimentos legais e burocráticos, variadas formas de entretenimento, a elaboração de novos mercados e modelos de negócio, o contato com grupos, comunidades e indivíduos espalhados pelo globo et cetera. No entanto, a despeito das mazelas, que também existem aos montes no avesso da moeda, a Terceira Revolução Industrial, assim como as duas anteriores e alguns outros episódios na história da espécie humana, acarretou, também, uma mudança profunda no que diz respeito à percepção e compreensão que temos sobre o tempo e o espaço: o importante se confunde com o urgente, as respostas devem ser instantâneas e todo segundo parece uma eternidade, toda espera, um desespero. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades”.
Ocorre, porém, que o sumiço é uma característica muito própria (ou era) dos viventes – quem é vivo sempre desaparece, diz o ditado impopular –, pois, nessa descontinuidade, a presença ganha sentido, o aparecer se ressignifica. Será que, na convivência, muitas vezes, o que nos falta não é a falta? O que nos falta, num sentido mais amplo, não é algum tipo de saudade?
Numa época em que estamos sempre “próximos” uns dos outros, conectados, “presentes”, interligados, online, – normalmente, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 12 meses por ano –, 300 milhões de pessoas, de acordo com a OMS, sofrem de depressão. Hoje, com pouca ou nenhuma frequência, ficamos sozinhos, pois vivemos cercados de amigos (friends) ou seguidores (followers), conhecidos ou não, rodeados por muitos estímulos e solicitações. Mesmo assim, sentimo-nos solitários amiúde. Nas várias contas das mais diversas redes, compartilhamos a vida em larga escala, dividimos cada momento desse intervalo entre a concepção e a morte, curtimos e comentamos cada instante alheio em áudio e vídeo, mas, no fim das contas, as contas não têm fim e a timeline se prolonga – virtualmente, pelo menos – ad infinitum.
Clarice Lispector escreveu, numa crônica de 1968, que a “saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença”. Que apetite sobrevive, pergunto eu, a um bucho inundado de “aqui” e “agora”? “Saudade é ser, depois de ter”, disse o Rosa, em Ave, Palavra. Que lugar existirá para o “ser” se o “ter” não dá espaço, se o “depois” não vem e o imediato se arrasta indefinidamente? Nós ignoramos de perto a distância e o valor da saudade. Se “o maior truque já realizado pelo diabo”, segundo Quintana, “foi convencer o mundo de que ele não existe”, o maior artifício da internet talvez tenha sido eclipsar o afastamento, a falta, a separação, de maneira sutil e profunda, em cada um de nós. A palavra “saudade” se liga, etimologicamente, à solidão (solitas, solitatem), mas também se aproxima de “saudar” (salutare) e de “saúde” (salus). Esse processo de recordar, de trazer ao coração, outra vez, uma lembrança, associado ao tormento, ainda que leve, da ausência, e à expectativa de um reencontro futuro, talvez seja necessária ao equilíbrio, à homeostase. Com a ilusão causada pelo convívio cibernético, banalizamos, muitas vezes, a potência de um encontro, a possibilidade, sempre desafiadora, de amar o próximo na proximidade.
Sim, não é nada fácil.
Na proximidade, o exercício amoroso é tão exigente, tão meticuloso e cheio de voltas, que amar é, certamente, a maior prova de amor. Admitamos, de uma vez por todas, que “pessoa difícil” talvez seja a redundância das redundâncias, o pleonasmo dos pleonasmos, porque, “ao fim e ao cabo”, como diria um velho amigo, “só existem ‘pessoas simples’ na falta de convivência” – na convivência, toda pessoa, sendo pessoa, é complicada, plural, multifacetada, cheia de vícios e virtudes.
Distorcendo, levemente, uma frase d’O outro pé da sereia, com a presença virtual quase ininterrupta, “quem parte” não “treme, quem regressa” não “teme”, porque o tempo não pôs à prova nenhuma lembrança e a distância não impregnou de ausência os entremeios. Sendo assim, devemos então cortar o plano de internet, sumir das redes sociais e abandonar, definitivamente, as smart things? Claro que não, mas podemos curtir e compartilhar um pouco mais a distância, cultivar, no interior, o rebento de saudade que a despedida, depois do encontro, faz surgir, apreciar, com paciência, a vontade do retorno.
Às vezes, para viver a proximidade, é preciso morrer de saudade, sentido, na falta de cada um, a maravilha do futuro presente.
Excelente reflexão, ótimo texto, parabéns!