Cristina Miyuki Hashizume
Alessandra Leticia Guerra Gouveia*/Jeffily Lima Glaser*/ Livia Maria Martins Ferreira*/Vitória Elias Torres Xavier*
No dia 03 de dezembro comemora-se o dia Internacional da Luta da pessoa com deficiência. O dia marca importante movimento para trazer visibilidade à luta contra o capacitismo e exclusão, reforçando a necessidade de acessibilidade e garantia de direitos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, marco no reconhecimento e proteção dos direitos humanos, se soma aos Decretos Legislativos de nºs 186/2008 e 6.949/2009, complementos à Constituição Federal de 1988, que instauram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e Protocolo Facultativo que reforça políticas (afirmativas) voltadas para este grupo, rechaçando todo e qualquer ato de discriminação e violência contra quaisquer pessoas.
Em que pese práticas tradicionais recorrentes que violam o respeito e a igualdade, acima descritos como necessários, ainda nos deparamos com o desafio de ter que lutar por práticas que já estão previstas em leis e políticas públicas que deveriam estar em prática. Logo, falar sobre Direitos Humanos é estabelecer critérios mínimos que garantam a dignidade e o respeito ao ser humano como um todo, em seus aspectos biopsicossociais e espirituais.
Desse modo, muito mais importante do que se ressaltar as limitações orgânicas ou psicossociais, nota-se que o maior impasse para a real concretização dos direitos das pessoas com deficiência está nos aspectos estruturais, sociais, econômicos, históricos e políticos, que impõem barreiras materiais e imateriais revestidas de preconceitos e estigmas que impedem o exercício dos direitos e deveres destes indivíduos. Assegurar “o exercício pleno e equitativo dos direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” é fundamental (CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, 2011, p.24). Logo, é cabível relembrar que após a Segunda Guerra Mundial, muitos foram os esforços de reabilitação e normalização das pessoas configuradas com alguma deficiência e/ou limitação, não havendo distinção entre deficiência e lesão. Em 2001, a ONU, mediante novos parâmetros de categorização, publica a International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF), ou a “Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde” (CIF), traz alterações significativas no olhar sobre a pessoa com deficiência, para além do olhar predominantemente médico, propondo uma visão mais humanizada e holística e reconhecendo os aspectos multidimensionais que engendram a subjetividade da pessoa com deficiência, que mede o estado funcional dos indivíduos, além de permitir a avaliação das suas condições de vida e fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas de inclusão social.
Diante disto, a partir de uma perspectiva entre a psicologia e a sociologia, faz-se importante conceituar o capacitismo: trata-se de um neologismo para denominar a “prática materializada através de atitudes preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional” (MELLO, 2016). O capacitismo se refere à discriminação às pessoas com deficiência. Trata-se de uma demanda urgente que se visibilize tal opressão contra as pessoas com deficiência e, por consequência, deve-se dar maior visibilidade social e política a este grupo. Mello (2016) destaca que para desconstruir as fronteiras entre deficientes e não deficientes “é necessário explorar os meandros da corponormatividade de nossa estrutura social ao dar nome a um tipo de discriminação que se materializa na forma de mecanismos de interdição e de controle biopolítico de corpos com base na premissa da (in)capacidade” (MELLO, 2016, p.5).
AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
O tema dos Direitos Humanos como um campo de trabalho e problematização por psicólogos e educadores evidencia a necessidade de atuarmos contra a perpetuação de mais desigualdades e exclusões. Em 1948, quando da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, discutia-se uma concepção de sujeito que tivesse assegurados os princípios de igualdade e dignidade, refletindo-se, principalmente, no “nunca mais” se repetir atrocidades do passado, como as Guerras mundiais e o nazismo. A Psicologia também, quando do seu surgimento, no século XX, partiu de uma intervenção essencialista, elitista e excludente controlar, mensurar e justificar, a partir da ciência, processos de exclusão.
A década de 1960, no mundo, e de 1980, no Brasil, traz um movimento de questionamento de tal abordagem mais excludente, assim como a propositura de uma prática que valorasse diferenças sociais, culturais, econômicas, étnicas, sexuais, entre tantas outras que compõem a diversidade de nossos campos sociais e de atuação. Não precisamos procurar muito por tais diferenças, visto que, num país como o Brasil, onde temos tamanha diversidade étnica e de condições socioeconômicas.
Sendo assim, entendemos que as identidades se constroem através das marcas da diferença, por meios que vão desde sistemas simbólicos de diferenciação a situações de exclusão social. Nesse contexto, não contemplar as diferenças é sinônimo de negar uma realidade que, por essência, é diversa.
De acordo com o Censo Demográfico de 2010, quase 46 milhões de brasileiros, ou seja, cerca de 24% da população declarou ter algum tipo de deficiência, seja ela física ou mental. Assim, percebe-se a importância de discutir políticas públicas que consigam congregar as diversidades e heterogeneidades desse grupo e suas deficiências. Desse modo, as ações governamentais voltadas para essa população devem considerar um mosaico de diferentes necessidades, além de promover, não apenas programas assistencialistas, como também ações preventivas, para que essas pessoas possam se desenvolver de forma eficaz e ter uma boa qualidade de vida.
A Lei nº 7.853/1989 e o Decreto nº 3.298/1999 correspondem os principais documentos normativos garantidores da cidadania das pessoas com deficiência. Essa lei determina ações preventivas, de diagnóstico e encaminhamento precoce para tratamento; programas específicos de prevenção de acidentes; criação de rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação; garantia de acesso aos estabelecimentos de saúde, públicos e privados, recebendo tratamento adequado, garantia de atendimento domiciliar de saúde para pessoa com deficiência grave e programas de saúde desenvolvidos com a participação da comunidade para estimular a integração social do grupo. Já o decreto, constitui-se uma política geral de assistência integral à saúde e a reabilitação, da qual também fazem parte a dispensação de órteses, próteses, bolsas coletoras e todas as demais ajudas técnicas e medicamentos, além da realização de estudos epidemiológicos para produzir informação acerca da ocorrência de deficiências e incapacidades, com vista a subsidiar a tomada de decisões. Embora o Decreto faça menção aos princípios da inclusão, os objetivos nele contidos parecem não explicitar de forma clara a mudança no foco de atenção advinda desse paradigma, representada pela necessidade de reconstrução do espaço social para atender às necessidades de todo e qualquer segmento populacional (OLIVEIRA, JÚNIOR E FERNANDES, 2009).
De fato, a Constituição de 1988 foi um avanço para as questões sociais de garantia de direitos e cidadania. Propõe diretrizes ainda tímidas para uma prática de inclusão à população com alguma deficiência nos diferentes espaços: o direito à saúde, ao lazer e à cultura.
Somam-se, mais recentemente, a Lei Brasileira de Inclusão (2015), a nova PNEE, que tanto tem gerado discussão sobre as escolas especiais, e que mostram como a sociedade ainda se depara com um olhar ainda excludente e capacitista, em que as pessoas são medidas pelas capacidades que têm (capacidades estas, quase sempre atreladas à produtividade no sistema capitalista). Ondas mais progressistas são intercaladas com ondas mais conservadoras, que fazem nossas políticas (que deveriam ser afirmativas) ora progredirem, ora regredirem em termos de garantia da inclusão e direitos às pessoas com deficiência.
A subjetividade da pessoa com deficiência se constrói a partir de marcas de diferenças simbólicas ou de exclusões diversas. Seu olhar, sua relação com a sociedade passam a ser marcados pelas práticas, quase sempre preconceituosas e estigmatizadas que ferem os direitos dos diferentes. A ânsia pela governamentalidade dos comportamentos, dos modos de ser e pensar dos diferentes se explicita quando as normas são impostas de forma rígida, apagando tais diferenças.
Mais recente, a partir da promulgação do Decreto da nova PNEE, percebemos como é importante nos policiar quanto aos crescentes avanços que foram sendo conquistados ao longo dos últimos 20 anos e como é inadmissível aceitar o retrocesso de leis que priorizem interesses comerciais e segreguem ainda mais uma categoria da população já alijada de políticas, ações e outros direitos, que como defende a Carta Magna, deveriam ser universais. No atual momento político no Brasil, vivenciamos um período de submissão da política social a interesses econômicos e de pequenos grupos, contexto que afeta diretamente a garantia dos Direitos Humanos. Numa visão gerencialista das políticas públicas, o papel governamental se restringe a cortes de gastos, num estado mínimo que se mostra incapaz de garantir dignidade e suportes necessários às pessoas com deficiência. A inclusão dessa parcela da população supõe, previamente, uma inclusão da população como um todo, realidade esta que não é a nossa.
Gonçalves (2004) salienta que na sociedade capitalista de bases liberais, o indivíduo é cidadão que faz uso de sua condição livre (no mercado) para trabalhar e consumir; tal liberdade é garantida nos direitos civis e políticos proclamados e reconhecidos na forma da lei.
Ainda, segundo Gonçalves (2004), na fase monopolista do capitalismo, além do indivíduo, o consumo passa a ser também objeto de manutenção para que esteja com disponibilidade no mercado em níveis adequados para a economia. Para tanto, os saberes científicos e profissionais tornam-se referências importantes para a ação do Estado. Incluem-se, além das regras de normalidade produzidas por diversas áreas, a educação e a psicologia como ciências que legitimariam o encaixe do indivíduo certo para o lugar certo, atuando em prol da organização estruturada e ordeira social.
Como considerações finais, temos que, à medida que se reconhece a existência dos direitos sociais, está presente também uma concepção de sujeito que acompanha as mudanças no sistema produtivo e na sociedade. Nesse desenvolvimento histórico, na fase do capitalismo sob a influência de preceitos neoliberais que supervalorizam o mercado e transformam questões sociais em questões de mercado de consumo, o Estado se vê num enorme conflito: como reconhecer os direitos sociais e assim, implementar políticas públicas que atendam as demandas sociais ocasionadas pelas desigualdades pelos mais diferentes motivos? O enredamento deve ser analisado e problematizado.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a política nacional para integração da pessoa portadora de deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Lex: Ministério Da Justiça – MJ, Brasília, 1999. Disponível em: https://www .planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. Acesso em: 20 nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio as pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a coordenadoria nacional para integração da pessoa portadora de deficiência (CORDE), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Lex: Ministério Da Justiça – MJ; Ministério Da Saúde – MS; Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS, Brasília, 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm. Acesso em: 20 nov. 2020.
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CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. — 4. ed., rev. e atual. – Brasília : Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2011. Disponível: < http://www.turismo.gov.br/images/ta/direitos/Convencao_Pessoas_Com_Deficiencia.pdf>. Acesso em 13 de Outubro de 2020.
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* Graduandas do Curso de Psicologia da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).
Alessandra Leticia Guerra Gouveia*