Laíze Lantyer Luz, Antonio Carlos da Silva e Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti
Núcleo de Estudos sobre Direitos Humanos – Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
Só num mundo de cegos as coisas serão como verdadeiramente o são. José Saramago, 1995.
(…) no arco-íris de cores somem
No invisível do Ser
Dos cegos que consomem
Os famintos que comem.
Laíze Lantyer Luz, 2018.Se trata de danar a la vista (…) y todo por pedir que les concedan derechos humanos básicos: salud, techo, comida, educación (…).
Marta Raquel Zabaleta, 2019.
Nós, cruzamentos, interfaces, global/local. Tudo pode parecer sem geografias, sem histórias e sem matemáticas. Entretanto, nunca estivemos tão à deriva e tão precários. Como seres humanos mesmo. Acesso ao trabalho, à cultura, à educação, à saúde. Das dimensões de direitos humanos e fundamentais tão debatidos e almejados ao longo desse último século, também enfrentamos violações, guerras, torturas e uma imenso “mundo abissal” (SANTOS, 2007). Em realidade, o paradoxo está mesmo nesse ponto: promoção e violação; visibilidade e apagamento; acessibilidade ou precariedade de todos os aspectos da vida, seja social, familiar e individual.
Esse contexto nos leva a observar o processo histórico mais recente, onde desde organizações mais simples até as mais complexas, nos deparamos com lutas por direitos, sejam através de letras jurídicas, proteção, garantias e dimensões (ou seja, aspectos que vão sendo conquistados poderiam já estar assegurados).
Não obstante, neste primeiro quartel, com maior ênfase a partir de 2015, temos matizado configurações de tempos intensos e conflituosos que exigem novos ventos e interpretações atuais para problemas recorrentes para evitar contínuos retrocessos nas dimensões e etapas dos Direitos Humanos (CAVALCANTI & SILVA, 2018b, p. 451).
Viveríamos a “Era dos Direitos”, proposta por Bobbio (2004) no início do milênio, mas não necessariamente a efetividade deles. Aliás, a história do Tempo Presente nos assinala justamente tal confirmação. Traduzir em consensos, pactos, planos de ação, políticas públicas nacionais e locais, letras jurídicas não necessariamente denota encerramento de uma etapa. Muito pelo contrário, iniciam-se negociações, ajustes, educação e comunicação social massivas, na busca de efetivar e “fazer” valer.
Nesta conjuntura, são os diversos movimentos sociais – em escalas mundiais – responsáveis, articuladores e incentivadores do pensar/agir/saber/fazer. Tudo isso demonstra a “vontade de potência” pela (re)construção de novas realidades, principalmente aquelas que foram sendo moldadas no decorrer do momento mais atual.
Como expressão e urgência, várias manifestações e múltiplos movimentos objetivam implantar, proteger e efetivar direitos, muitas vezes, essenciais. Exemplo disso e para esse artigo escolhemos – a partir de uma metodologia qualitativa e multireferenciada, coadunando com resultados parciais de projetos – abrir um ensaio em relacionasse recortes de investigação dos autores (sustentabilidade, ética e justiça social, relações de gênero).
Deste modo, a escolha do tema recai sobre sujeitos (in)visíveis e precarizados. Assim, um breve histórico sobre o “Movimento Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis” abre espaço para a reflexão pretendida. Fundado com esse intuito – organizar o espontâneo – visa em sua essência dar visibilidade a uma força de trabalho marginalizada, renegada como verdadeiro capital humano invisível. O direito à emancipação sustentável (social, econômica e ecológica) é base orientadora das relações éticas, em um ambiente no qual o sujeito somente é reconhecido como cidadão/cidadã se for partícipe e, por consequência, cúmplice do processo de produção, consumo e propagação do excedente do sistema capitalista.
Como parte das engrenagens de difícil reciclabilidade da consciência e oportunidade à (re)novação de e para si (identidade e alteridade), há de se considerar o pior apagão: o da memória. A amnésia coletiva gesta uma sociedade esquizofrênica. E nada melhor do que a Arte, nas variadas formas, cores, manifestações visuais, para eternizar homenagens.
Ocupando espaços públicos, comerciais, de grande circulação a Exposição Fotográfica foi o meio para promover olhar, pensar e integrar. Tendo como sujeitos centrais as catadoras, viventes e trabalhadoras de Salvador, a mostra visual foi dedicada à Isodélia dos Santos Neves (1958-2017), moradora da comunidade do Boiadeiro. Mãe de cinco filhos, professora, militante, catadora e referência do Movimento Nacional das Catadoras e Catadores de materiais recicláveis do Estado da Bahia (MNCR).
A Exposição “Catadoras de Luxo: Heroínas (In)visíveis” é uma proposta multidisciplinar integrado com Educação Socioambiental, Direitos Humanos, Fotografia e Artivismo (LUZ, 2019). O objetivo é resgatar a autoestima, dar visibilidade e reconhecimento às catadoras, por meio da arte e da participação coletiva. Visa sensibilizar e despertar empatia para um descarte correto de resíduos, trazendo à centralidade mulheres adultas, negras, catadoras.
Ao visibilizar essas mulheres, retiramos o véu da indiferença relativos aos problemas socioambientais que nosso “analfabetismo” é incapaz de enxergar. Focalizar e destacar seus trabalhos, suas experiências e suas histórias também podem oferecer ampliada forma de educar através de outras lentes.
Partindo do pressuposto que Direito Ambiental, Direito à Cidade e Direitos Humanos são indissociáveis, sustentabilidade não pode ter apenas abordagem ambiental ou uso de tecnologias para solucionar problemas sistêmicos. Há que integrar seres viventes na dinâmica, observando o que já existe e as maneiras de produzir e modos de viver. O estágio de analfabetismo ambiental provoca e agrava as múltiplas vulnerabilidades sociais que atingem essas pessoas e, por consequência, suas famílias e entornos relacionais.
As Catadoras de rua e cooperadas selecionadas – aqui matizes de ações laborais, locais e condições – foram fotografadas em seus ambientes de trabalho e locais de Salvador escolhidos por elas. A captação, portanto, visual não é só espontânea, mas sim como são e como querem ser vistas.
A categoria de catadoras/es que (sobre)vivem dos resíduos não é recente no Brasil. Na literatura, nas artes, em documentos históricos já estavam presentes e confirmam a “longa duração” de exclusão.
Marcas de um processo desigual, não acessível e, historicamente, de não declaração como sujeitos. Nas penas do poeta Manuel Bandeira, em 1947, ganharam contornos na obra “O Bicho”. Uma denúncia da existência de pessoas no submundo da catação de restos de comida (BANDEIRA, 1993).
Os latões de lixo, os contentores urbanos, os aterros não são localidades de não reconhecimento e memória para o contexto brasileiro e latino-americano. Estão lá. Sempre estiveram e foram retratados, narrados, denunciados.
Todavia, os personagens do poeta não eram catadores de materiais recicláveis. Estavam no ápice das vidas precárias (BUTLER, 2016) em busca de comida e não de recicláveis para revender como mercadoria.
Quantas foram as mulheres antes de Isodélia e das doze retratadas na mostra? Duas nomeações podem ser referências ilustrativas para a transformação – de resíduos e outras linguagens. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), de catadora à escritora, marca e registra boa parte da história de mulheres negras pobres (“faveladas” e “despejadas”). Os “Pedaços de fome” (1963) ultrapassam a vida, o trabalho e a existência. Catar, para Carolina de Jesus, não seria somente a coleta de folhas, jornais e revistas velhas. Ganharia mundo – em catorze línguas – tornando o invisível em vernáculo.
A atividade de catar – verbo transitivo que exige complemento – sejam alimentos ou material reciclável para (sobre)viver também foi retratado por Marcos Prado. Novamente uma mulher negra, pobre, excluída tornou-se protagonista.
No documentário Estamira (2004), dedicado à titular nomeada (Estamira Gomes de Sousa, 1941-2011), percurso e diário foram os focos. Excluindo esse material audiovisual e inúmeros artigos de periódicos, não tem uma referência direta à sua biografia – nem wikipedia. Portanto, a memória está preservada na “tradução” da vida pelos olhares e pelas lentes masculinas. Sabe-se que recolhia nos lixões urbanos mais do que materiais de subsistência. Lá estavam sonhos e sentido para viver. No entanto, viver com dignidade do lixo, em condições precárias de trabalho, sem moradia, sem inclusão no processo de gestão dos resíduos parece ser uma emancipação insustentável e utópica.
A esperança está no germinar de sentimentos, não estáticos e inertes, que movimentos sociais e artísticos são capazes de despertar em cada pessoa. O problema central em relação ao direito à emancipação sustentável das catadoras não é de reconhecimento, mas primeiramente da ressignificação do que se entende por lixo, resíduo. O processo educativo de emancipação sustentável precisa ser um movimento empático da população. Afinal, a maneira como a sociedade vê o que ela mesma produz (lixo) interfere também sobre quem trabalha com resíduos.
Educar para e pelos direitos humanos (CAVALCANTI & SILVA, 2018 a e b) não é tarefa fácil. Exige identificar, reconhecer e buscar “presenças”, afirmar sentidos. Se não for deste modo, então para que buscar sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível, desprovido de razão e reconhecimento do outro como sujeito ético-moral?
Referências
BANDEIRA, Manuel. O Bicho. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Fronteira, 1993.
Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é possível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-55.
CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon & SILVA, Antonio Carlos da. Em que ponto estamos: urgências, emergências e pautas de educação e direitos humanos. In: GUIMARÃES, F.; NEWTON, P.C. & BEZERRA, R.S. (Org.). Direitos Humanos: Desafios e perspectivas no mundo contemporâneo. Campina Grande: Ed. UEPB, 2018a, pp. 98-108. Disponível em http://www.editorarealize.com.br/revistas/ebook_conidih/trabalhos/ebook3_comunicacao.pdf
CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon & SILVA, Antonio Carlos da. Entre mundos e discursos em prol dos Direitos Humanos: enlaces, agendas e redes ampliadas. In: PANDO BALLESTEROS, M.P.; GARRIDO RODRÍGUEZ, P.& MUÑOZ RAMÍREZ, A. (Org.). El cincuentenario de los Pactos Internacionales de Derechos Humanos de la ONU. Salamanca: Ediciones de la Universidad de Salamanca, 2018b, pp. 447-459.
LUZ, Laíze Lantyer. Waste Pickers of wealth: (in)visible heroines. 2019. Disponível em: https://www.mreza-mira.net/vijesti/clanci/waste-pickers-of-wealth-invisible-heroines/
PRADO, Marcos. Estamira. Documentário. Brasil, 2004. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ibuo079DGF8
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos Cebrap, São Paulo, (79), 2007, pp. 71-94. Disponível em dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004